*Por Georgios Theodoros Anastassiadis,
Gustavo Damázio de Noronha e Heitor Cesar Ribeiro
No contexto da crise sanitária gerada pela infecção humana da COVID-19, reconhecida como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, diversos países implementaram severas medidas restritivas de viagens internacionais, mais notadamente os Estados Unidos da América e países europeus, bem como países limítrofes do Brasil, como a Argentina e o Paraguai. Além disso, muitas nações adotaram regimes de quarentena, confinamento ou isolamento, limitando o deslocamento interno de seus cidadãos.
Tais medidas restringem temporariamente a entrada de cidadãos estrangeiros ou as viagens internacionais com origem ou destino a países considerados como epicentro da pandemia da COVID-19. Busca-se, com as referidas providências, somadas às medidas de isolamento e confinamento, impedir a dispersão do vírus até que se encontre uma vacina ou tratamento adequados, evitando-se, assim, perdas de vidas humanas.
É nesse contexto que se faz inevitável analisar a necessidade de flexibilização das regras brasileiras de residência fiscal, na esteira do que vem sendo feito por alguns países desenvolvidos.
O assunto é de extrema importância porque a aquisição da residência fiscal decorre das regras domésticas dos países e tem como consequência a obrigatoriedade de a pessoa física oferecer a totalidade dos seus rendimentos, muitas vezes em bases universais (como no caso do Brasil), à tributação do imposto de renda no país em que houve a suposta aquisição de residência.
No recente estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), denominado “Analysis of Tax Treaties & Impact of the COVID-19 Crisis”, o órgão analisou diversas implicações tributárias da crise sanitária aos indivíduos que se sujeitam a frequentes movimentações internacionais, endereçando algumas recomendações aos seus países-membros.
O estudo da OCDE prevê duas situações distintas em que a crise da pandemia da COVID-19 pode gerar problemas quanto à aquisição de residência fiscal, recomendando a flexibilização das regras domésticas, de tal forma que esta pandemia seja considerada uma circunstância excepcional.
A primeira situação analisada pela OCDE diz respeito ao indivíduo que se encontra temporariamente fora de seu país, a lazer ou a trabalho, e fica retido em outro país, em decorrência das medidas restritivas de mobilidade geradas pela crise sanitária, adquirindo, em função da rigidez das regras ordinárias, residência fiscal neste outro país segundo a sua legislação doméstica.
Isso pode vir a ocorrer porque a maior parte dos países adota a regra em que a residência fiscal das pessoas físicas é adquirida após a permanência em seu território em um determinado número de dias.
No Brasil não é diferente, uma vez que, dentre outras situações, a residência fiscal brasileira pode ser adquirida quando um não residente ingressa em território nacional com visto temporário e por aqui permanece por pelo menos 183 dias, consecutivos ou não, em um período de até doze meses.
A segunda situação analisada pela OCDE diz respeito ao expatriado que se mudou para outro país e lá adquiriu residência fiscal, mas retorna temporariamente ao seu país natal em virtude da crise sanitária. Esta situação também pode afetar os brasileiros expatriados que se mudaram para o exterior, mas retornaram ao Brasil temporariamente em virtude da COVID-19. Embora se possa supor que na maioria dos casos não haja ânimo de retorno definitivo, o indivíduo pode vir a readquirir a residência brasileira caso aqui permaneça por um prazo maior que 183 dias, consecutivos ou não, em um período de até doze meses.
Em ambas as situações analisadas pela OCDE, se o Brasil tiver uma convenção bilateral para evitar a dupla tributação com o outro país envolvido, o problema da dupla residência fiscal poderá ser resolvido com base no mecanismo de resolução de conflitos de dupla residência (tie-breaker rules) do respectivo acordo, afastando-se a residência fiscal brasileira. Neste sentido, o artigo 4º de todas as convenções em que o Brasil é parte prevê que, em caso de dupla residência fiscal, irá prevalecer somente a residência em que as ligações pessoais e econômicas do indivíduo forem mais estreitas (centro de interesses vitais), sendo afastada a residência no outro país contratante.
Assim, nos casos em que o não residente se encontrar retido no Brasil em decorrência das restrições de mobilidade geradas pela pandemia ou em que o brasileiro expatriado retorne ao País de forma temporária exclusivamente em vista de alguma medida sanitária, restará claro que o seu centro de interesses vitais não é o Brasil e que a residência fiscal brasileira deverá ser afastada pela aplicação da convenção.
Porém, caso não haja uma convenção entre o Brasil e o outro país envolvido, a dupla residência poderá prevalecer e, neste caso, o indivíduo passaria a ser residente fiscal no Brasil, de tal sorte que todos os seus rendimentos auferidos em bases universais seriam tributáveis pelo imposto de renda brasileiro, além de possivelmente permanecerem tributáveis também no outro país.
Como se sabe, a rede brasileira de convenções para evitar a dupla tributação não é muito ampla, se analisada em contraste às redes dos países membros da OCDE. Somente para fins de comparação, o Brasil possui atualmente convenções bilaterais em vigor com 33 países, ao passo que a Holanda possui tais convenções com mais de 90 países. Portanto, o problema da dupla residência fiscal poderá vir a ser enfrentado com mais frequência no Brasil do que em muitos países desenvolvidos.
Sendo assim, para se evitar tal situação, é de todo recomendável que o Brasil normatize a flexibilização de suas regras domésticas de residência fiscal durante o período em que os países estiverem adotando as restrições de mobilidade em decorrência da pandemia da COVID-19.
No caso brasileiro, medida simples seria a concessão do direito, ao não residente que estiver no Brasil (tanto o estrangeiro quanto o brasileiro expatriado), de excluir da contagem de dias de permanência o período em que a OMS mantiver decretado o estado de pandemia. Alternativamente, caso se entenda ser esta medida muito ampla, propõe-se que os não residentes não computem, para fins de aplicação das regras de residência fiscal, os dias de permanência do Brasil que comprovadamente decorrerem de alguma restrição gerada pela crise da COVID-19.
Vale observar que alguns países já têm adotado flexibilizações nesse sentido, seguindo as orientações da OCDE, tanto para o estrangeiro que estiver retido nos respectivos países quanto para o expatriado que se vir obrigado a retornar temporariamente ao seu país natal. Apenas a título exemplificativo, identificamos a adoção de medidas semelhantes pelos governos dos Estados Unidos da América, Reino Unido, Austrália e Irlanda.
As autoridades fiscais dos Estados Unidos da América, por exemplo, estabeleceram que os cidadãos norte-americanos expatriados poderão continuar aplicando a isenção do imposto de renda sobre rendimentos auferidos no exterior mesmo que haja o retorno temporário ao país natal em decorrência da COVID-19. Além disso, os estrangeiros que permanecerem no território norte-americano em decorrência das restrições de mobilidade não terão os dias de permanência decorrentes da crise sanitária computados na aplicação das regras de residência fiscal.
De maneira semelhante, o Reino Unido estabeleceu que, para fins de aplicação das regras domésticas de residência fiscal, não serão computados os dias de permanência em seu território em que o não residente: (i) estiver colocado em quarentena ou for aconselhado por um profissional de saúde a se auto isolar no Reino Unido como resultado do vírus; (ii) for aconselhado pelo conselho oficial do governo a não sair do Reino Unido como resultado do vírus; (iii) se encontrar incapacitado de deixar o Reino Unido como resultado do fechamento de fronteiras internacionais; ou (iv) for solicitado pelo seu empregador a retornar temporariamente ao Reino Unido como resultado do vírus.
Em vista de todo o cenário que se apresenta, embora as restrições de mobilidade não sejam desejadas, por limitarem as liberdades individuais e gerarem impactos econômicos muito negativos, não se tem notícia de qualquer outro tipo de medida capaz de salvar vidas neste momento, pelo menos até que seja criada uma vacina ou estabelecido algum protocolo de prevenção, razão pela qual as limitações impostas se fazem de fato necessárias.
Em tal contexto é que os governos dos países, diante da inevitável situação em que estamos, devem se esforçar ao máximo para mitigar os efeitos adversos das medidas restritivas, atenuando o seu impacto nas vidas dos cidadãos. Sendo assim, recomendamos fortemente que as autoridades brasileiras adotem a flexibilização das regras domésticas de aquisição de residência fiscal da forma proposta no presente artigo, com base em estudos da OCDE e inspiradas em medidas adotadas em outros países.
* Georgios Theodoros Anastassiadis é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados em São Paulo; Gustavo Damázio de Noronha é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados no Rio de Janeiro e Heitor Cesar Ribeiro é advogado do Gaia Silva Gaede Advogados em São Paulo.