Planejamento sucessório e a covid-19

Foto: Divulgação / Logo Assis Gonçalves.

Marina Amari

A pandemia da COVID-19 demandou, além de respostas do direito, criatividade. As tecnologias ganharam ainda mais destaque num cenário em que as informações mudam a todo tempo. A sociedade tenta, aos poucos, acostumar-se ao novo normal, trabalhando, educando e consumindo em período de atipicidade. Afinal, ainda que se tenha conhecimento do início da pandemia, não se sabe, ao certo, quando seu fim chegará, nem quais medidas serão adotadas no desconhecido longo prazo que perdura.

Estudos buscam a descoberta da vacina e a ciência se mostra, mais uma vez, uma fonte de esperança. Promessas para setembro. Ou será em outubro, ou dezembro? Não se sabe. É por isso que, em meio a questionamentos, um mínimo de previsibilidade é fundamental, especialmente se consideradas as idas e vindas, abertura e fechamento repentino do comércio causado por novo lockdown — a exemplo do que se deu no Paraná no início de julho.

Nesse contexto de busca por segurança e prevenção é que se tem conhecimento de que os cartórios do Paraná registraram um crescimento de 70% na procura por testamentos, segundo dados apresentados pela Gazeta do Povo. Os cartórios de Minas Gerais já haviam realizado mais de quatro mil atos de transferências de bens até maio de 2020, conforme estatística do Colégio Notarial do Brasil.

Apesar da inabitualidade desse tipo de organização, especialmente em razão de ser assunto comumente evitado no seio familiar — afinal, poucos procedimentos são tão burocráticos, onerosos e desgastantes quanto os decorrentes do falecimento — o planejamento sucessório passa de mera ferramenta voltada a reduzir o pagamento de tributos a uma escolha inteligente em tempos de crise.

Por meio dele, é possível driblar as amarras da sucessão hereditária e a complexidade das normas sucessórias, planificando e transferindo em vida o patrimônio, de maneira racional e segura. Sem que haja previsão de mudanças na legislação, ainda que tramite projeto de lei com fins de dar maior autonomia ao proprietário do patrimônio, essa é a maneira atual pela qual se evitam conflitos sucessórios e se protegem os bens familiares, respeitada a vontade de quem detém sua titularidade.

Recentemente, o assunto foi impulsionado em razão da repercussão midiática de figuras públicas, fato que destacou a relevância de o testador se atentar à legítima – parte de 50% reservada aos herdeiros necessários, que são cônjuge, descendente e ascendente. Mesmo feito o testamento, a observância da discussão envolvendo o enquadramento do companheiro como herdeiro necessário também é essencial na formulação do planejamento. Isso porque, recentemente, o STF estendeu ao companheiro as regras sucessórias aplicáveis ao cônjuge. Ainda que na decisão não houvesse discussão direta sobre o alcance do julgado, tendo, de fato, ficado aberto o enquadramento ou não do companheiro como herdeiro necessário, a tendência do Direito de Família e Sucessório atual é a de equiparação dos efeitos do casamento à união estável.

É por isso que, além de equacionar os bens em vida, o planejamento sucessório objetiva dar protagonismo ao proprietário do patrimônio. A sucessão legítima é quase sempre insuficiente nesse sentido, e, muitas vezes, o testamento isolado não é medida capaz de promover o que se almeja.

O planejamento sucessório deve ser avaliado de acordo com a estrutura familiar e patrimonial, sendo comumente necessário equalizar determinados instrumentos para o fim pretendido. Pode contar, assim, com uma conjugação de alternativas jurídicas, como a elaboração de holdings, a doação em vida, a implementação de usufruto, a criação de acordo de acionistas e sócios, planos de previdência privada, entre outros.

O testamento é ferramenta essencial a um bom planejamento, e suas limitações legais devem ser conjugadas com essas outras alternativas legais a fim de formatar a arquitetura sucessória almejada. Ainda que o testamento público seja o mais comum, por conferir maior segurança, o testamento particular ganha destaque em tempos de covid-19, porque a legislação prevê que, em circunstâncias excepcionais, o testador pode elaborar de próprio punho um testamento, sem a presença de testemunhas. Essa facilitação é relevante, porque não pode ser testemunha quem for nomeado herdeiro ou legatário, o que, em tempos de restrição do convívio social, poderia dificultar demasiadamente o ato de testar.

O planejamento sucessório envolve, necessariamente, um planejamento tributário. A opção pelas holdings, por exemplo, além de estratégia de concentração empresarial, é interessante porque há imunidade tributária do ITBI, em boa parte dos casos, quando se incorpora patrimônio à pessoa jurídica em realização de capital. Significa dizer que, se pensado estrategicamente, é possível evitar esse imposto no ato de transferência de imóveis para a holding.

Fundadores de empresas familiares estão se atentando para a necessidade de compatibilização da família, da gestão e do patrimônio, especialmente em razão de terem presença muito forte nessa modalidade de negócio. A preocupação é pertinente. Dados do IBGE e do Sebrae demonstram que 90% dos empreendimentos nacionais (90%) são empresas familiares, mas 30% sucedem à segunda geração e apenas 5% atingem a terceira. Além disso, a Pesquisa Global da PwC demonstra que 72,4% das empresas familiares não apresentam plano de sucessão.

Algumas das opções conferidas pelo ordenamento vigente são a instauração de regras sobre governança, a formulação de pactos antenupciais, e a antecipação da legítima, com a gravação da participação societária com cláusulas de impenhorabilidade, incomunicabilidade, inalienabilidade e usufruto. Como dito, tudo depende da estrutura familiar/empresarial, e da vontade do fundador a fim de “(…)proceder a passagem do controle da empresa de uma geração para outra, e isto respeita a uma técnica de organização preventiva de distribuição, manutenção, administração e bom governo na sucessão da propriedade familiar”.

 

Marina Mori é advogada no escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto e Advogados Associados e mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).